A vida sem glúten

Está na hora de abordar um assunto delicado: doença celíaca.

Ser colaboradora de um espaço com o alcance que o Jardim do mundo possui e, ao mesmo tempo celíaca, torna quase que obrigatório abordar essa temática tão séria.

Você conhece algum celíaco? Há coisas importantes que precisa saber.

Trata-se também de uma questão de utilidade pública: estudos recentes falam em mais de 42 mil mortes anuais no mundo todo de crianças devido à doença celíaca. Além disso, muita gente passa a vida toda sem ter um diagnóstico, o que pode levar ao desenvolvimento de outras doenças e também ser fatal.

Demorei 28 anos para descobrir que tinha a doença, reluto até hoje para aceitar a vida com tantas restrições que ela me impõe. Isso aconteceu por que os sintomas que passaram despercebidos durante a maior parte da minha vida, ficaram mais evidentes depois dos 25 anos. Mesmo assim, passaram-se mais 3 anos até que um médico pediu o exame de sangue que mudou toda a minha vida.

Na prática, pouco tempo depois de ter recebido o diagnóstico e mudado toda a minha alimentação, eu já senti uma grande melhora na qualidade de vida. Meu corpo mudou, o consumo de remédios quase desapareceu, passei a me sentir mais disposta, menos deprimida, até consigo raciocinar melhor hoje em dia.

Mas, nem tudo são flores. Aliás, quase não existem flores. Por isso, enumero algumas questões da vida de um celíaco que são importantes serem conhecidas.

  1. Doença celíaca não é Dieta.

Muitas pessoas optam por fazer dietas livres de glúten por algum tempo, tendo resultados incríveis de emagrecimento. Com isso, nomenclaturas como “glúten free”, se espalham por restaurantes e rótulos. Por um lado há um aumento de possibilidades para celíacos, por outro, sofremos com a banalização do problema. Doença celíaca é uma doença autoimune, que causa uma atrofia no intestino, tendo graves consequências e até sequelas. Celíacos não podem doar sangue e nem órgãos, a restrição do glúten é a única possibilidade de ter uma vida normal. Mais uma coisa: não há cura e nem medicamentos. A única opção é a restrição total do glúten.

  1. Glúten contamina.

Não basta deixar de preparar comida com farinha de trigo, o glúten contamina desde o fogão, até a mesa. Quando alguém recebe o diagnóstico da doença vai, necessariamente, fazer um processo de descontaminação de todos os utensílios, isso quando não for preciso comprar coisas novas. Um forno onde é feito um bolo normal nunca pode ser usado para fazer comida para um celíaco. A contaminação de maquinários industriais é um dos fatores que interfere na vida de celíacos. Por exemplo, a aveia. Naturalmente ela não contém glúten, mas ao ser processa costuma passar por maquinários onde outros grãos com glúten também foram processados, sendo contaminada no processo. Por isso alguns produtos como cerveja ou a própria aveia são tão caros quando não contém glúten! É necessário um maquinário exclusivo para eles.

  1. Há glúten em quase tudo.

Toda vez que eu usava um delineador nos olhos, ficava com as pálpebras inchadas e doloridas no dia seguinte. Demorei um tempo para me dar conta de que era por causa do glúten! Isso acontece com cremes, shampoos e mais uma infinidade de coisas que levam glúten na composição. Ser celíaco exige estar atento a essas coisas. Bebidas não estão imunes! Leia sempre o rótulo antes de comprar um presente para um celíaco. Eu mesma já fui hospitalizada devido ao descuido de um amigo.

  1. A vida de um celíaco costuma ser solitária.

Descobri a doença quando já morava sozinha. Na minha casa não entra produtos com glúten, isso é uma coisa que amigos e familiares já sabem. Mas, também é um fator que dificulta para ter um namorado, ir em festas ou restaurantes. Muitos restaurantes não têm a preocupação em separar os alimentos e utensílios no preparo das refeições. Quando um celíaco descobre um que tem, acaba ficando freguês! Sabe aquela história de convidar aquela paquera para jantar? Pizzaria e padaria, acabam sendo automaticamente excluídas da lista de possibilidades. E pode ser até que o celíaco goste muito de você e acabe aceitando o convite. Mas, no fundo ele vai sofrer com a vontade de comer aquela coisa com aparência deliciosa que você está comendo, enquanto ele saboreia sua salada sem graça. Se for vegetariano, como eu, as coisas ficam um pouco mais difícil ainda!

Tudo deve ser pensado, as viagens precisam ser bem programadas. Um celíaco vai precisar saber com antecedência se o hotel terá o que servir a ele no café da manhã. Além disso, dependendo do lugar para onde ele for, levar uma mala com comida pode ser uma questão de sobrevivência. Eu nem preciso explicar o quanto isso afasta pessoas, o quanto é difícil para nós. Penso nisso toda vez que saio de casa, mesmo quando vou para a casa dos meus pais…

  1. Não sinta pena, respeite.

Eu já perdi a conta de quantas vezes ouvi a palavra “dó”. Muitas delas foram ditas por pessoas que falavam comigo enquanto comiam uma coisa gostosa que é proibida para mim. “Mas nem um pouquinho?” também é uma pergunta bem frequente. Acontece que realmente não é uma vida fácil, exige muito cuidado, suplementação de vitaminas e uma vigília e autocontrole constante. O que o celíaco precisa é saber que será acolhido! De nada adianta você sentir dó se não sente empatia! Se você gosta de alguém que é celíaco, saiba que a doença vai afetar sua vida também! Você vai precisar pensar e estar atento a essas coisas.

  1. Você também pode ser celíaco.

Enxaqueca, diarreia, dor de cabeça, abdômen estendido, problema de humor, depressão, deficiência de absorção de nutrientes, tonturas, obesidade, emagrecimento… A lista de sintomas é longa! Há um fator genético, isso é fato. Mulheres são as principais atingidas, mas não acaba aí. Nem todos os casos são realmente uma “herança familiar”, há uma crescente discussão sobre a questão devido ao surgimento cada vez mais frequente de novos casos. Na minha família ninguém tem a doença diagnosticada, apesar de eu ter quase certeza de que não sou a única. Antes de descobrir que tinha a doença eu nem podia imaginar que chegariam a esse diagnóstico. Dormia quase sentada devido ao refluxo, vivia em constante oscilação de humor, problemas intestinais, tonturas e outros sintomas desagradáveis e facilmente confundidos com outras coisas. Esteja atento aos sinais do seu corpo, ouça o que ele diz! Além disso, se você desconfia, faça um teste! Passe um período sem consumir glúten e veja como seu organismo reaja. Se perceber a diferença, procure ajuda médica!

Uma tripulante do meio acadêmico, doutoranda em Ciências humanas, gosto de navegar por entre as caixinhas das áreas de conhecimento e tecer conexões nada obvias. E, dos rótulos que carrego, há aqueles que me agradam mais: permacultora, anarquista, feminista, espiritualista e louca, estão entre eles. Gosto de falar com pessoas, refletir, trocar e sentir. Observo e interajo o máximo que posso, deixo o coração encher e quando ele transborda, transcrevo tudo o que sinto. Disso surgem meus textos.