Por um caminhar mais atencioso nos espaços urbanos – Conexão com o meio

Muitos de nós andamos pelas ruas com o tempo cronometrado. Seguimos de um lado para o outro com objetivos determinados. Uma reta com algumas curvas, um pouco de virada para esquerda ou direita, atravessamos, paramos, subimos e descemos degraus, ladeiras, desviamos… de tudo isso é composto o nosso ir e vir cotidiano.

A descrição acima envolve quem anda a pé, mas de carro há também uma gama de movimentos diferenciados: muitas voltas a procura de um lugar para estacionar, uma vaga na sombra (que já anda escassa devido a quantidade de árvores retiradas das calçadas!), o caminho mais curto, com menos trânsito. Viver ao volante também tem sua própria geometria traçada a cada movimento.

Quem dá vida ao meio?

Quando caminhamos mais calmamente, ainda que a proposta seja ir para um encontro divertido, um bate papo, uma visita descontraída, um evento, lá estamos nós, ocupados ao celular, nas redes e também, muitas vezes preocupados com a segurança no percurso, ou conversando tão fervorosamente com nossa companhia que ficamos fechados naquela bolha de interação. Há na verdade sempre um ruído de tensão e uma nevoa de desligamento no que poderia ser um momento de conexão, de atenção ao entorno e a si mesmos como sujeitos que dão vida ao meio. Um percurso atento, facilita conexão com as cenas e por meio de uma observação silenciosa se ganha aprendizado.

Enxergar é diferente de ver

E se ao transitar pelas ruas, ao invés de sucumbir ao mecanicismo e ao olhar para as telas, ou somente para quem nos acompanha, nos entregássemos a um exercício de auto-observação, observação, contemplação e silencio, como seria o nosso dia a dia?

Certamente, essa dinâmica que envolve a troca da desatenção pela atenção transforma caminhos, aparentemente cinzentos e sem graça em caminhos mais coloridos e interessantes.  O trajeto vira sempre novidade. Tem sempre algo a ensinar, a mostrar. O cotidiano ganha nuance de aventura.

Ao trocar o barulho da fala pelo silêncio da observação há também o entendimento de ciclos, as fases, a percepção da dinâmica da vida, das vidas que estão naquele meio. O silêncio no caminhar permite que nossos olhos vejam de fato e não apenas enxerguem as coisas. O ver é bem diferente do enxergar. Enxergar é um olhar sem avaliação, sem profundidade. É a imagem e fim. Você enxerga quem passa, os carros, a sujeira da calçada, a cor da folhagem, das flores, o pássaro, mas não compreende o que está acontecendo ali. Não vê, portanto, como a vida acontece além do “eu”.

Há uma história em tudo, um motivo para a cor da calçada estar por exemplo, rosa ou roxa, há um evento acontecendo quando uma árvore antes seca e sem graça, ganha cor e realeza, concedendo sombra por meio de suas folhas e galhos. Os pássaros buscando ramos, O bem te vi cantando incessantemente nas antenas … tudo isso diz respeito a um ciclo, a um movimento importante, que é a transformação, a renovação. Ver isso, depende de um olhar atencioso que parte do coração, da experiência do sentir, do se permitir ser mais que um sujeito apressado.

A pressa desnecessária quando cede lugar a um passo organizado, ritmado e até cantado, cria   um momento de terapia e relaxamento, um estado de auto-organização e conexão integral com a vida. Sabe um estado de presença? Mas de presença real e não apenas determinado pelos papéis e funções diárias.

O ver, possibilita aprendizagem sobre o que é importância e importante, sobre compartilhar espaços, sobre respeito, sobre empatia, sobre cuidado, amplia nossa capacidade de cuidar do meio ambiente, já que uma vez que você se percebe parte, se percebe também co – autor, responsável.

 Um relato de experiência

Comecei a fazer o exercício que batizei de caminhada atenciosa por um acaso e resolvi transformar meus percursos cotidianos em uma extensão das minhas meditações.

A meditação raja yoga, que pratico há quatro anos, ensina sobre posturas mentais (não há posturas físicas), tipos de pensamento, observação desapegada, envio de bons votos para transformar atmosferas e fornece a oportunidade de meditar, ainda que em atividades cotidianas e em movimento. Eis que vi nas andanças, a possibilidade de ampliar e intensificar a prática, sentir e ter a experiência do ver e discernir.

Ao sair, procuro manter uma identidade original em movimento, ou seja, não sou apenas um corpo que se move, mas uma energia e é ela que dá vida a esse corpo. Conforme passo pelas pessoas, busco mandar boas vibrações, dirigir bons pensamentos a elas, não importando quão fechadas elas estejam.  Mantenho ainda o foco no “ser” real que sou e no “ser” real que elas também são, diferentes de todos os papéis que elas desempenham no mundo. Neste momento, não se presta atenção na roupa, não se encara ninguém, apenas se passa com essa concentração.

Ainda na dinâmica, procuro observar árvores, cores, sentir cheiros de flores, experimentar o vento ou as gotas da chuva, os sons que me rodeiam, os sorrisos, tudo isso sem criticismo.  Observo e sigo. Tudo e todos estão lá, cumprindo sua história e nisso, não há margem de erro.

Trabalho a aceitação nessa caminhada, diferente de apatia. Sei que existem coisas que possuem seu próprio ciclo e formas de acontecer. Não crio embates nem julgamentos sobre o que é avistado. É libertador.

No trajeto busco aprender com cada cena e tirar delas, algo de valioso e positivo e isso não me deixa trazer para dentro de casa nenhuma carga. Tudo fica no seu lugar. O que é meu é meu e o que é do outro, é do outro. Não precisamos aceitar tudo. Não somos esponjas.

O que se descobre no percurso

Por aqui, por meio da atenção interessada em minhas caminhadas, descobri: Bem te vi canta e sacode as asas quando está com seu filhote que aprendeu a voar alto. É sinal de alegria. E é o bem te vi que espanta o gavião que vive querendo pegar filhotinhos nas árvores. O bem te vi dá um rasante sem medo e o gavião se vai. Sabe quem avisa que tem gavião na área? O beija flor … isso mesmo! Quem diria que aquele ser delicado fosse assim um guardião? Ele emite um som que deixa alerta as pombas e o bem te vi entra em ação. Já vi beija flor atacar o bem te vi também. Entre setembro em outubro, (aqui no bairro, ao menos), vários pássaros estão com filhotinhos novos e querem protege-los. Muitos filhotinhos de bem te vi caem no prédio e é um tal da gente devolver para a árvore! Além deles, há a saíra cinzenta e uma mais azul que comem banana na área de serviço. Os filhotes delas se tremem todos pedindo comida no telhado e as mães pegam um monte de banana no bico e colocam na boca do pequenos que gritam incessantemente.  Ah, o gavião vem sempre ao amanhecer e ao fim de tarde, não curte horários quentes.

Pombos se banham na piscina da tartaruga da casa vizinha e embora muitos não curtam eles eu me divirto olhando eles tomando sol no telhado com as asas abertas. Fora que atravessam a rua a pé que nem gente (risos).

O sabiá corre as calçadas com rapidez e acorda muito, muito cedo. É tempo de namoro para eles, então aqui o despertador tem nome: sabiá!

As rolinhas, aquelas minis pombinhas marrons, fazem barulho. Descobri outro dia. Um barulho forte até e elas ou brigam muito ou brincam muito, porque correm atrás da outra o dia inteiro. Uma pousa numa telha, a outra sai lá do outro lado para correr atrás. Quando se vê tem um monte correndo em círculos e elas levantam as asas para “lutar”.

É tempo de ipê florido. Tem uma calçada pela qual passo que o chão fica forrado de amarelo. O ipê dá umas vagens e lá estão as sementinhas. Mais à frente tem uma árvore que cisma em ser “seca”, mas estes dias começou a criar um chumaço de folha a cada ponta. Mas ela continua seca e forte.

Tem a calçada de um clube que tem a árvore mais liberta da cidade que conheço! Não tem nenhum fio, nada atrapalhando ela. Ela está indo para “o infinito e além” e o tronco envergou para a rua, mas ela mais acima voltou ao centro. É verdinha, verdinha de folha miúda e linda.

Voltando aos bem te vis, eles fazem ninhos atrás das caixas de força dos postes. E que ninho bem feito!

Do lado esquerdo da calçada que mais ando, tem uma árvore de jasmim manga que nunca está sem flor. Linda, encantada e mística. Está dentro de um espaço aberto de um prédio aparentemente sem muita cor e vida. Do lado direito tem um muro com grafites engraçados.

E o jardim da praia? Pássaros diferenciados pela grama, criança de patinete na fonte dos sapos, mar de fundo. O caminho que faço mostra ainda, o pôr do sol do lado esquerdo, empoderado. Quando o dia nasce, o sol bate num prédio de vidro que cria um bonito efeito cristal que consigo ver da janela da sala.

Reconheço cada pessoa que passa por mim todos os dias. Mães que levam seus filhos para escola, gente que vai malhar na academia do clube, jovens que voltam de seus cursos. Gente que até me dá oi sem saber meu nome e vice-versa.

Tudo isso, considero exercício de meditação, aprendizado, yoga puro ( yoga : conexão) e tudo isso, só existe porque existe uma caminhada atenciosa.

Nossos dias tem beleza e ainda que seja num contexto urbano, o meio ambiente continua a fazer sua parte sem parar, se adaptando, se ajustando, impedindo que o cinza tome conta também dos nossos corações. É ter os olhos na alma, para ver …

Val é de Santos, gosta do nascer e do entardecer alaranjado que o céu do litoral concede quase todo dia! Pedagoga, apaixonada por projetos sociais e por movimentos que incluam o uso de todo potencial criativo, ou seja, toda ideia é uma semente cheia de valores.

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