O Mito do Indivíduo Autossuficiente

Essa é uma palavra que aparece com alguma frequência aqui no Jardim do Mundo. A autossuficiência é um termo que ajuda a definir o grau máximo de independência do indivíduo. Quando usamos o termo aqui no site, Lara e eu largamos nosso academicismo, como biólogos que somos, e ignoramos as leis da termodinâmica para relativizar sobre esse termo, de uma maneira mais romântica e não tão literal.

Sabemos que sistemas fechados, representado por um indivíduo autossuficiente imaginário são totalmente insustentáveis, visto que a entrada e a saída de energia envolve o meio circundante e uma série de medidas que nos tornam dependentes, exigindo trocas com o meio ou outros indivíduos, criando relações, sejam passionais ou não.

Certo é, que esse mito mexe com a cabeça de muita gente nos dias de hoje, porém também sabemos que podemos caminhar nesta direção, sim… infinitamente, seguindo passos co-evolutivos e é por isso que usamos o termo aqui, ainda assim resolvemos lidar com esse tabu, simplesmente porque não queremos nada pronto e mastigado e isso já nos torna mais autossuficientes.

Notórios solitários são fascinantes. Henry David Thoreau em Walden, monges budistas no alto de seus mosteiros, e heróis ficcionais como Robinson Crusoe são figuras românticas da sobrevivência solitária bem sucedida. Seu ambiente é a natureza. Seu triunfo aparente é resultado da coragem, engenhosidade e auto-suficiência.

A razão para que tais personagens pareção atraentes é que, ironicamente, eles são tranquilizadores. Eles dão a impressão reconfortante de que qualquer um poderia prosperar em isolamento como eles. Esta garantia pode ser resumida na declaração de Henrik Ibsen no final de Um Inimigo do Povo (1882), depois que os moradores perseguem Dr. Stockmann por revelar que os banhos turísticos da cidade estavam contaminados. Stockmann declara: “O homem mais forte do mundo é aquele que se encontra mais isolado.”

Os notórios solitários encarnam a ideia de libertação das vulgaridades e do stress da vida social. Como seres humanos, somos vulneráveis ao humor, ideologias, percepções, conhecimento e ignorância dos outros. Somos vulneráveis a convenções, leis e hierarquias da nossa sociedade. Precisamos da bênção das outras pessoas e muitas vezes a sua ajuda a fim de obter recursos. Quando somos jovens e quando estamos velhos, somos vulneráveis o suficiente para que nossas vidas sejam felizes apenas se outras pessoas resolverem se preocupar conosco.

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Foto do arquivo de Henry David Thoreau do lago Walden

Não é de se admirar, portanto, que Robinson Crusoe seja um dos romances mais reconhecidos da história; há consolo na independência autónoma do eremita. Mas essa imagem romântica da vida eremítica repousa sobre uma ideia errada das circunstâncias tanto dos grandes solitários como da natureza do isolamento social.

Os eremitas famosos, tanto na vida real como na ficção, são sempre do sexo masculino. Eles tendem a ser jovens, em forma e saudáveis. Eles tendem a não ter filhos e nem cônjuge. Eles representam uma auto-suficiência que só alguns poderiam imitar. Além disso, nos meandros de suas histórias, encontramos evidência de que eles não são totalmente auto-suficientes. Walden de Thoreau é apenas uma hora de caminhada a partir de Concord, Massachusetts, e Thoreau visitava a cidade regularmente durante seus anos de retiro. Ele também sempre manteve três cadeiras prontas para convidados (uma cadeira para a solidão, outra para amizade, e outra para a sociedade), e ele observou que, por vezes, havia de 25 a 30 almas sob o seu teto.

O mito vem sendo construído há muito tempo.O mito vem sendo construído há muito tempo

Os monges budistas, para que possam permanecer em silêncio durante meses, são apoiados e alimentados por seus discípulos e leigos. Além disso, eles passam por anos de treinamento antes de se retirar para a solidão, se libertando do que concentra no cultivo de estados profundamente sociais de coração e mente, tais como compaixão, bondade e alegria na felicidade amorosa dos outros.

Mesmo Dr. Stockmann de Ibsen se acolhe com sua esposa e filha enquanto declara triunfante que o homem mais forte é aquele que está mais isolado.

Um ermitão do mundo real que parece ser diferente é Richard Proenneke, um carpinteiro militar aposentado e naturalista amador, que viveu sozinho em Twin Lakes, Alaska, por cerca de 30 anos. Ele registrou sua vida em vídeo que mais tarde foram usadas para fazer o documentário Alone in the Wilderness (2004). Regularmente, Proenneke recebia suprimentos a partir de um piloto de Bush, mas, durante o inverno, a sua casa de campo em Twin Lakes era muitas vezes inacessível, deixando-o completamente sozinho.

Claro, Proenneke, como os outros grandes solitários, ambos tinham um sofisticado conjunto de habilidades sociais adquiridas que fez uma vida solitária possível, num meio-ambiente selvagem, difícil ao mesmo tempo rico, como seu pano de fundo.

A natureza é uma fonte não só de estimulação sensorial, mas também de sociabilidade entre espécies. No mundo natural, as grandes solitários encontram companheiros. Proenneke tinha um pássaro de estimação. Ele também observava a vida de muitas espécies. Robinson Crusoe tinha um cachorro, dois gatos, algumas cabras e um papagaio, e mais tarde um companheiro humano na sexta-feira. E outro personagem parecido com Crusoe, o fugitivo de 12 anos de idade, Sam Gribley, o protagonista do romance infantil de Jean Craighead George em “My Side of the Mountain” (1959), captura um bebê de falcão de um ninho, treina-o, e o chama de ‘Assustador’. Ele também adota um doninho e o chama de ‘Barão’.

O mesmo tipo de antropomorfização acontece no filme Náufrago (2000), onde Tom Hanks, que parece estar desprovido de todo o contato dos animais em uma ilha deserta, personifica uma bola de voleibol, dando-lhe um rosto, nomeando-o Wilson, e mais tarde fica genuinamente aflito quando ele a perde.

Nasce Wilson.Nasce Wilson

O IMPLACÁVEL ISOLAMENTO REAL NÃO É NADA ROMÂNTICO. NA VERDADE, É MUITO PIOR DO QUE O STRESS DA VIDA SOCIAL.

Em contraste com o sucesso de Proenneke, um militar treinado, o alpinista inexperiente Christopher McCandless morreu de fome no Alasca, em 1992, depois de se aventurar na natureza sozinho e com poucos recursos, uma emocionante e inspiradora historia que também pode ser vista sobre outra ótica, o de uma vítima da fantasia do eremita selvagem.

Christopher McCandless morreu de fome no AlascaChristopher McCandless morreu por conta de um composto tóxico presente em bagas selvagens consumidas por ele

Além disso, a evidência de pessoas que já sofreram isolamento social indesejado – entre eles os jornalistas norte-americanos Jerry Levin e Terry Anderson, que foram mantidos em confinamento solitário no Líbano como prisioneiros políticos por parte do Hezbollah na década de 1980 – é de cortar o coração. Outro prisioneiro político, Shane Bauer, que foi mantido incomunicável por 26 meses no Irã, descreveu o horror negro da sua experiência e seu desejo desesperado de se reconectar com outras pessoas, mesmo com seus captores.

Essas contas são confirmados por um crescente corpo de evidência psicológica que indica que apoio social, contato, interação e inclusão são fundamentalmente importantes para a vida humana minimamente decente e, mais profundamente, ao bem-estar humano. Na maior parte do tempo, precisamos uns dos outros; não podemos prosperar ou mesmo sobreviver sem o outro. Estas necessidades fundamentais são a base para uma série de direitos que negligenciamos incluindo os direitos de fazer parte de uma rede de conexões sociais.

A PESSOA MAIS FORTE DO MUNDO É AQUELA QUE ESTÁ MAIS CONECTADA.

Na nossa cultura ocidental individualista, onde a imagem romântica do grande solitário prevalece, hoje ganhou um ponto de equilíbrio, para mostrar que devemos adotar um modelo diferente do ‘homem mais forte’. A pessoa mais forte poderia muito bem ser a única que se faz vulnerável aos outros ao se tornar determinada a sobreviver a isso e se fazer uma pessoa melhor pela mesma razão. A pessoa mais forte do mundo é aquela que está mais conectada.

A vida é um acontecimento extraordinário para ser passado sem um propósito, aqui queremos inspirar a mudança, a conexão com os ciclos da natureza, o resgate dos saberes ancestrais e manuais. Vamos juntos por esse caminho descobrindo que tudo que precisamos já está em nós mesmos.

jardimdomundo.com

6 opiniões sobre “O Mito do Indivíduo Autossuficiente

  • Reply Tais 29 junho, 2016 at 19:16

    Lindo texto!! Amei!!
    …e um pouco antes de morrer, Christopher McCamdless, escreve “hapiness is only real, when shared”, filme “In to the wild”

  • Reply Michelle 29 junho, 2016 at 20:58

    Excelentes reflexões.

  • Reply ELIETE. 1 julho, 2016 at 9:25

    Maravilhoso texto, perfeito, escrito com a alma, por isso toca.

  • Reply Glauco Fundão 2 julho, 2016 at 14:50

    Mesmo Sidarta Gautama, isolado pelo seu pai das vicissitudes do mundo, quando confrontado à elas, tornou-se mais iluminado e fundou o Budismo. Parabéns JDM, excelente reflexão, podemos e devemos ser independentes, mas somos gregários e nossa existência depende da existência dos outros seres que nos rodeiam e sinergizam conosco.

  • Reply Kirttan Lilamoye 2 julho, 2016 at 21:37

    A pessoa mais forte do mundo é aquela que é FELIZ sozinha, acompanhada de uma multidão ou de poucos bons amigos, conectadas ou desconectadas. Por favor manos, desnecessário justificar o “gosto”, (que pode ser necessidade, apego ou obsessão também), por estar “conectados”… No mais o conceito de autossuficiência SEMPRE foi o de um pequeno e nuclear coletivo transdisciplinar e trans-social para se chegar o mais próximos de algo parecido com autossuficiência, esse tema inesgotável, diga-se de passagem. Jayahoooow!!!

  • Reply Demis Lima 24 julho, 2016 at 12:16

    Muito lúcido o texto.

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